segunda-feira, 30 de julho de 2012

Ritual e Liturgia - Damon e Pítias


Damon e Pítias eram grandes amigos desde a infância. Confiavam um no outro como se fossem irmãos e
ambos sabiam, no fundo do coração que nada havia que não fizessem um pelo outro. Chegou o dia em que
precisaram demostrar a profundidade dessa devoção. Aconteceu assim: 
Dionísio, rei de Siracusa, aborreceu-se ao tomar conhecimento dos discursos que Pítias vinha fazendo. O
jovem pensador andava dizendo ao público, que nenhum homem deveria ter poder ilimitado sobre outro e
que os tiranos absolutos eram reis injustos. Num assomo de cólera, Dionísio mandou chamar Pítias e seu
amigo. 
- Quem você pensa que é, espalhando a inquietação entre as pessoas ? 
- Divulgo apenas a verdade - respondeu Pítias. - Não pode haver nada errado nisso. 
- E sua verdade sustenta que os reis têm poder demais e que suas leis não são boas para os súditos ? 
- Se um rei apossou-se do poder sem a permissão do povo, sim, é o que falo. 
- Isso e traição ! - gritou Dionísio - Você está conspirando para me depor. Retire o que disse ou arque
com as consequências. 
- Não retiro nada - respondeu Pítias. 
- Então você morrerá. Tem algum último desejo ? 
- Sim. Permita-me ir em casa apenas para dizer adeus à minha mulher e meus filhos e deixar em ordem os
assuntos domésticos. 
- Vejo que não somente me considera injusto, mas também estúpido - Dionísio riu, sarcástico. - Se sair de
Siracusa, tenho certeza de que nunca mais o verei. 
- Dou-lhe uma garantia - disse Pítias. 
- Que garantia nesse mundo você me poderia dar para fazer-me crer que algum dia voltará ? - exclamou
Dionísio. 
Nesse momento Damon, que permanecia calado ao lado do amigo, deu um passo à frente. 
- Eu serei a garantia - disse. - Mantenha-me em Siracusa como seu prisioneiro até o retorno de Pítias.
Nossa amizade é bem conhecida. Pode ter certeza, de que Pítias voltará se eu ficar retido aqui. 
Dionísio examinou em silêncio os dois amigos. 
- Muito bem - disse por fim. - Mas se está disposto a tomar o lugar do seu amigo, deve se dispor a aceitar
a mesma sentença, se ele quebrar a promessa. Se Pítias não voltar a Siracusa, você morrerá em lugar dele. 
- Ele cumprirá a palavra - respondeu Damon. - Não tenho a menor dúvida. 
Pítias recebeu permissão para partir e Damon foi atirado na prisão. Muitos dias se passaram e, como Pítias
não voltava, Dionísio se deixou vencer pela curiosidade e foi à prisão ver se Damon já estava arrependido
de ter feito o acordo. 
- Seu tempo está chegando ao fim - o rei de Siracusa escarneceu. - Será inútil implorar misericórdia. Você
foi um tolo ao confiar na promessa do seu amigo. Pensou realmente que ele iria sacrificar a vida por você,
ou por qualquer outra pessoa ? 
- É um mero atraso - Damon rebateu com firmeza. - Os ventos não permitiram que navegasse, ou talvez
tenha encontrado um imprevisto na estrada. Mas se for humanamente possível chegará a tempo. Tenho
tanta certeza da sua virtude como da minha própria existência. 
Dionísio admirou-se da confiança do prisioneiro. 
- Logo veremos - disse ele, deixando Damon sózinho na cela. 
Chegou o dia fatal. Damon foi retirado da prisão e levado à presença do algoz. Dionísio saldou-o com um
sorriso presunçoso. 
- Parece que seu amigo não apareceu - ele riu. - Que acha dele agora ? 
- É meu amigo - Damon respondeu. - Confio nele. 
Nem terminaram de falar e as portas se abriram, deixando entrar Pítias cambaleante. Estava pálido, ferido,
e a exaustão tirava-lhe o fôlego. Atirou-se aos braços do amigo. 
- Você está vivo, graças aos Deuses - soluçou. - Tudo parecia estar contra nós. Meu navio naufragou numa
tempestade, bandidos me atacaram na estrada. Mas recusei-me a perder a esperança e finalmente consegui
chegar a tempo. Estou pronto a cumprir minha sentença de morte. 
Dionísio ouviu com espanto essas palavras. Abriam-se seus olhos e seu coração. Era-lhe impossível resistir
ao poder de tal lealdade. 
- A sentença está revogada - declarou ele. - Jamais acreditei que pudessem existir tamanha fé e lealdade na
amizade. Vocês mostraram como eu estava errado e é justo que os recompense com a liberdade. Em
troca, porém, peço um grande auxílio. 
- Que auxílio ? - perguntaram os amigos. 
- Ensinem-me a ter parte em tão sólida amizade. 

Essa história se passa em Siracusa, cidade-estado da Sicília, no século IV a.C.. O orador romano Cícero
relata que Damon e Pítias (também chamado Fíntias) eram seguidores do filósofo Pitágoras.
(Extraído do Livro das Virtudes)

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